sexta-feira, 25 de junho de 2010

Um Olhar sobre o sentimento religioso e seu manejo clínico



Certo dia ouvi dizer que o ser humano saudável era aquele que gozava de plenitude nas dimensões do Biológica , psíquico e social, argumentando ser essa uma proposta de visão mais integrada do Ser Humano, contraponde-se ao paradigma do conceito de saúde como ausência de doença.

Na história da psicopatologia que se mescla muitas vezes a história da medicina é possível verificar que ao longo da evolução da compreensão sobre o sofrimento humano, passou muitas vezes por atribuir a causa da doença ao sobrenatural, há possessão por espíritos malignos ou por vontade cósmica.

A cura do doente já foi de responsabilidade do Xamã ou curandeiro que através de procedimentos mágicos, intervia no seu paciente e ele melhorava, quer por seus e muitos poderes terem efeito naquele doente , ou quem sabe pela eficácia simbólica do ato de curar naquele contexto.

Mas esses métodos de cura muitas vezes não davam conta de atender todas as patologias e pior, sua práxis não era acessível, houve então a necessidade de pensar uma arte ou técnica que permitisse compreender, explicar e intervir no doente de modo que fosse possível outras pessoas terem acesso e testa-las em outras pessoas.

Nesse momento a ciência fez uma escolha: deixar o aspecto espiritual para os xamãs , padres atribuindo a esse aspecto um status não científico pois esse aspecto não é consensualmente observável, passável de medições e controle.

Vejo hoje que a ciência precisou abandonar antigas técnicas e visões para afirmar um modelo de prática que controlasse e medisse os processos da natureza. A começar por definir a natureza humana : Bio- psíquica-Social. Mas isso não quer dizer que o ser humano na contemporaneidade abandonou a dimensão espiritual do seu cotidiano e do seu imaginário.


Nesse sentido vejo que a psicologia se vê desafiada no lugar em que ocupou durante quase um século inspirada pela idéia de que “a religião é o ópio do Povo”, ou seja , não considerando o aspecto religioso como parte fundamental do seu paciente.

Em outras palavras, a psicologia se mostrou tendendo seu olhar para “psicologisar a espiritualidade” já as pessoas cujo principal referencial se dá pelo prisma religioso, apresenta uma tendência a “espiritualizar o psicológico”.

Tarefa desafiadora já que posso considerar o relato do sentimento religioso vivencia mística ou espiritual tão inefável e sua manifestação tão variada que certamente põe em cheque o lugar do cientista que pode prever e controlar todas as variáveis do seting terapêutico.

Outro desafio é que a clinica contemporânea enfrenta um empasse em relação ao acolhimento dessas questões já que durante a sua formação o profissional não adquiriu um vocabulário que lhe permita saber do que se está falando ao relatar vivencias do Sagrado.

Segundo Amatuzzi (2006)”... é cada vez mais frequente o aparecimento explícito de inquietações e motivações religiosas, bem como de conflitos pessoais e familiares eclodidos a partir de posicionamentos religiosos...”

Para chegarmos a uma aproximação que respeite a natureza e o significado dessa experiência, pode ser útil começar diferenciando a inquietação religiosa da experiencia religiosa propriamente dita.

Amatuzzi (2006) pp. 216 comenta:

“A primeira se refere à experiência de um vazio que habita a pessoa, enquanto a segunda é a experiência de um preenchimento desse vazio, por meio do encontro com algo percebido como real e que está fora da pessoa. Essas experiencias são complementares: uma sem a outra se esvazia. A inquietação religiosa diz respeito a um conhecimento de si, das dimensões de nossa aspirações, de nossos desejos. A experiencia religiosa diz respeito a um encontro efetivo com algo outro que é capaz de preenche-lo. “

A primeira é vivida inicialmente como carência e depois interpretada como insatisfação. A segunda é vivida inicialmente como preenchimento, expresso metaforicamente como uma espécie de “chegar em casa “ .1



A concepção criativa sobre a origem existente em várias culturas revela o sonho sobre o fim ultimo assinalam a maneira pela qual o indivíduo sai de si, o que constitui o seu modo de desempenho de papeis sociais. Dessa forma o indivíduo revela -nos com a sua espiritualidade e sua religiosidade são constituídas.

“O Homens é história encarnada e no bojo de si mesmo vive não só o sofrimento decorrente dos encontro e desencontros vividos ao longo de sua biografia , mas também porta o testemunho da dor de todos os homens ao longo da história.” O seu mal-estar é também afetado pelas condições de vida inerentes ao seu tempo.

Na atualidade, observa-se que o ser humano se encontra capturado no registro do Mesmo, da coisificação, de modo que a transcendência originária da condição humana encontra-se soterrada por camadas e camadas de concepções efêmeras e mercantis, levando o ser humano a experimentar a agonia claustrofóbica do sem-sentido.

Atravessado pelo tédio, ameaçado pela impossibilidade de sustentar um sonho que seja esperança. Em meio a esse panorama o desenraizamento constitui um panorama fundamental na compreensão do adoecimento na atualidade que se expressam de várias formas por exemplo o desenraizamento étnico e o estético.

Mas aqui gostaria de lançar foco nas implicações do desenraizamento diante do sagrado o qual de certa forma, também contempla as outras categorias de desconexão usando um termo da atualidade como sinônimo de des-enraizamento que aparecem no discurso de nossos pacientes.

O desenraizamento diante do sagrado ocorre em nosso tempo em decorrência do modo como a vida humana aparece regida pelo uso da técnica como modo de vida, convivemos com um grande desenvolvimento tecnológico, que se de um lado propiciou a nós uma vida confortável, de outro levou a uma organização de mundo em que as próprias relações inter-humanas são mediadas pela técnica.



Segundo Safra, G podemos compreender a experiência religiosa a partir de três registros ou categorias temáticas: o registro psíquico, o registro existencial e o transcendental.

No Pano psíquico, observa-se que as imagens do divino no psiquismo humano sofrem evolução à medida que a personalidade do indivíduo alcança um funcionamento mais integrado, ou seja, quando o indivíduo pode entre outros aspectos, alcançar níveis de auto-responsabilidade que permita a mudança no modo-de ser no mundo.

Nesse registro, o trabalho clinico se da no campo das representações imaginárias presentes no movimento transferencial ( imagos paternais e maternais), a medida em que vá ficando claro na relação terapêutica o que e quem se está projetando a partir da experiencia do Sagrado pode haver nesse registro uma evolução do sentimento religioso em decorrência do amadurecimento psíquico facilitando de uma experiencia para além do campo representacional.

O ser humano está sempre posto diante do fato de sua finitude, há um movimento que se relaciona com o anseio do fim a partir da atualização daquilo que não foi para que possa vir a ser.

Criar um sentido pode significar em alguns vocabulários cultural-religioso, uma missão, dharma, karma, destino, para citar apenas alguns exemplos. O sentido ultimo de alguém constitui o princípio pelo qual a sua espiritualidade se constitui no registro existencial.

“...O ser humano por meio de seu gesto cria sempre novos sentidos, andarilho em direção ao sentido ultimo. Estamos sempre entre a origem e o fim. O nascer e o morrer...” Safra, 2004.

Cada um de nos estabelece uma concepção a respeito da origem. Essa concepção determina uma ontologia peculiar à pessoa que a formula, ou seja, dando condição de possibilidade para essa existência ser quem ela é hoje.

Fenômeno que também é encontrado em outros registros da experiencia humana, tais como a vida em uma determinada comunidade ou cultura étnica. Ao contatarmos uma cultura organiza-se ao redor de uma concepção da origem do mundo peculiar àquele grupo cultural. Fenômeno semelhante existe do ponto de vista de um indivíduo.

A ontologia pessoal é um aspecto fundamental da semântica existencial do indivíduo, que se estende, significando seus gestos, suas palavras , as coisas de que ele utiliza para compor seu mundo pessoal. Fato que aqui pode ser entendido como idioma pessoal presente no discurso, no gesto presente no encontro clinico.

Do ponto de vista do manejo terapêutico, Safra propõe que é fundamental o trabalho que auxilie o paciente a por em jogo seu gesto em direção ao porvir, ou seja, quais são as atitudes observadas no cotidiano do paciente que se relacionam com seus sentimentos em relação ao sentido de origem e fim.

As queixas de incoerência entre o pensar o sentir e o agir tem abertura para se trabalhar nesse registro da experiencia religiosa.

O trabalho clinico buscará sustentar a possibilidade do sonho ultimo do analisando, para que o seu modo pessoal de realizar sua teleologia -teologia possa acontecer.



O trabalho com a religiosidade do paciente no registro existencial demanda que se possa, no diálogo clinico , acessar as facetas fundamentais do seu idioma pessoal: o seu sonho de origem e seu sonho ultimo.

“(...)Podemos dizer que o ser humano é transcendência, que acontece como abertura originária diante do Outro. Isso implica dizer que cada pessoa está sempre diante da experiencia da alteridade. ( ...) “ (Safra 2006)

No momento em que a pessoa pode se deixar atravessar pela experiencia, o apartamento de uma espiritualidade, que poderia ser fenomenologicamente descrita como “ um Outro” vive em mim. Nessa perspectiva o homem vê-se diante um Outro para além do outro humano , ou mundo espiritual ou Real, já que muitas narrativas religiosas argumentam ser o mundo real da ciência um mundo de ilusões onde habita o não real.

Nesse registro de trabalho a clinica erá caracterizar-se pela possibilidade de sustentar o movimento realizado pelo analisando do que se revela em sua experiência sobre a condição humana e sobre o Real. Muitas vezes, torna-se necessário o olhar de testemunho que possibilite à pessoa a portar o saber que nela emerge .



Ambos os registros propostos nos dão base conceitual para que a experiência dos nossos pacientes conosco seja facilitadora do movimento espontâneo nesse importante aspecto da existência: a espiritualidade.

Assim a psicoterapia na contemporaneidade pode ir um pouco mais na direção da visão e intervenção no ser humano integral, Total.

O que proponho não é um tratamento espiritual, já que exitem muitas propostas terapêuticas e religiosas que versam a respeito dessa importante tarefa, apenas lanço uma reflexão que pode servir para discutirmos o tema da espiritualidade no contexto clinico da psicoterapia.

Kleber de Almeida Soares

psicoterapeuta

Nenhum comentário:

Postar um comentário